O transe coletivo de apoiadores de Bolsonaro após sua derrota nas urnas produziu uma série de ações como resposta ao sofrimento inscrito na estrutura neurótica: sofrimento que advém, neste caso, do déficit entre a realidade dos fatos e a psíquica.
“Hitler foi melhor que Jesus, pelo menos expurgou o que não prestava.” Esse é o recorte do diálogo de um professor de História, em Santa Catarina, que revela uma conhecida declaração atribuída a Fiódor Dostoiévski, em seu Os Irmãos Karamazov: “Se Deus não existir, então tudo é permitido”. Mas é no contexto da queda de Bolsonaro, com o lema fascista “Deus, Pátria e Família”, que Hitler aparece como melhor que Jesus – uma morte simbólica no coração do imaginário cristão.
A relação apressada entre morte de Deus e permissividade generalizada apenas alimenta as práticas protofascistas. Há uma subversão do dito de Dostoiévski feita pelo psicanalista Jacques Lacan que funciona melhor: “Se Deus não existir, então nada é permitido”. Pode-se ler pela via da afirmação: se Deus existir, aqueles que se colocam como instrumento direto dele tudo podem. Em nome de Deus, pode-se clamar por golpe militar; homenagear torturador; manifestar desejo pedófilo ou sugerir o fuzilamento dos petistas; advogar o direito de correr com arma empunhada atrás de um homem negro que gritou “amanhã é Lula”. Vive-se, na organização psíquica daqueles que se colocam como instrumento de Deus, um estado de exceção em que as leis de um regime democrático ficam suspensas para “expurgar o que não prestava”. Poderíamos dizer que, em nome de Deus, cria-se o apocalipse, a distopia contemporânea.
O filósofo esloveno Slavoj Žižek, seguindo Lacan, argumenta que a lição do terrorismo atual – sobre aos atentados do 11 de Setembro nos Estados Unidos – é que “se Deus existe, então tudo, incluindo explodir milhares de pessoas inocentes, é permitido – pelo menos àqueles que alegam agir diretamente em nome de Deus, já que, claramente, uma ligação direta com Deus justifica a violação de qualquer refreamento e consideração meramente humanos”.
O transe coletivo de apoiadores de Bolsonaro após sua derrota nas urnas produziu uma série de ações como resposta ao sofrimento inscrito na estrutura neurótica: sofrimento que advém, neste caso, do déficit entre a realidade dos fatos e a psíquica. Bloquear rodovias e ter orgasmos coletivos com anúncios falsos sobre uma prisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, são apenas respostas suportáveis à assimetria entre o imaginário (em boa parte alimentado com fake news) e o campo simbólico (estruturado por leis sobre as quais a sociedade se ergue).
O horror diante da possibilidade de fim das hierarquias
Bolsonarismo. Extrema-direita. Neoconservadorismo. Neofascismo. Neonazismo. Para o que esses enunciados apontam? Qual é a verdade camuflada nas bravatas e truculências de patriotas? A queda de Bolsonaro expôs ainda mais o que todos sabemos, mesmo que na sua forma paradoxal de um saber não sabido: o horror diante da possibilidade de fim das hierarquias que subjugam o outro pela sua condição de gênero, de etnia, de classe social, de credo… Hierarquizar e subjugar são expressões que buscam reduzir o outro (as minorias silenciadas) à condição de propriedade a ser explorada.
Práticas discursivas que colocam em xeque a reprodução social das hierarquias naturalizadas – modelo de família, heteronormatividade, religião dominante – provocam uma histeria coletiva. A queda de Bolsonaro intensificou mais ainda o ódio como afeto que regula as ações com o outro na condição de inimigo que precisa ser expurgado da sociedade.
“Vai morrer. Não vou ajudar.” Em áudio vazado em 3 de novembro, o médico Ygor José Saraiva, que atende no Hospital Regional Francisco Dantas Maniçoba, em Nova Adriana, interior do Mato Grosso do Sul (MS), diz que não vai atender quem votou em Lula. Em bloqueio à BR-163, no trecho que corta a cidade de São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, manifestantes fazem saudação semelhante à “Sieg Heil” utilizada pelo nazismo. Consciente ou não, a declaração e o gesto integram uma gramática bolsonarista que se atualiza a cada dia, nas falas, nas reproduções de suásticas nas paredes de prédios, muros e portas de banheiros públicos, nas escolas e nas universidades como uma erva daninha que cresce nos lugares mais adversos.
Quando Deus se torna um instrumento ordinário, são as paixões tristes, punitivas, castradoras que se seguem. O racismo, a xenofobia, o sexismo, a gordofobia resultam de ações que visam diminuir a potência de outrem. Rebaixar sua condição humana é, assim, expropriar ainda mais sua energia; e, quando aparecer algum impeditivo, resta expurgá-lo da sociedade.
A queda do outro como propriedade privada
No final do Manifesto do partido comunista, Karl Marx e Friedrich Engels declaram que todo programa de um partido comunista pode ser resumido pela abolição da propriedade privada. A declaração aponta para o real do capitalismo, aquilo que é impossível de se realizar sem sua própria extinção. Um real à espreita, como uma assombração que nunca se deixa ver, mas arrepia cada poro d’alma.
Alain Badiou, filósofo francês, compreende que o acesso ao real do capitalismo “é a afirmação da igualdade, é decidir, declarar que a igualdade é possível”. A igualdade enquanto horizonte possível se desloca em outras palavras (significantes) com sentidos que se tocam na direção do real do capitalismo; elas têm o poder de produzir um transe coletivo, como na figura do pêndulo para induzir a hipnose.
Igualdade de gênero, redução da desigualdade social, fim do racismo… São significantes que reverberam práticas discursivas. Se a igualdade se realizar, é o fim do capitalismo, entendendo que igualdade não se opõe à diferença, mas, sim, à desigualdade de condições. Reger as relações humanas a partir da produção do comum – inversamente à lógica neoliberal com sua apropriação privada do público – significa horizontalizar as práticas sociais. Em última instância, é o fim do outro como propriedade privada.
O bloqueio foi uma recusa ao freio à violência
O que os manifestantes queriam com o bloqueio das rodovias era a reprodução da violência simbólica. Reproduzir as hierarquias que estruturam a sociedade, deixando, tácito, práticas de que a mulher é propriedade privada do homem, de que o trabalhador é propriedade do patrão e de que, no âmbito das crenças, Deus é o patrão de todos.
A ideia de propriedade demarca não somente os bens materiais, mas também as relações humanas e a legitimação da violência como forma de ordenar as coisas e os seres. Com o lema “Deus, Pátria e Família”, a gestão dos vivos segue o ordenamento privado de uma visão de mundo. A entrada desse lema no Brasil se deu pelo jornalista Plínio Salgado (1895-1975) quando atualizou o fascismo italiano no integralismo a partir do Manifesto de Outubro, de 1932.
Em uma versão atualizada da Frente Integralista Brasileira, organizada em um site que carrega o lema “Deus, Pátria e Família”, o Manifesto de Outubro é revisitado como o documento mais “significativo da História da nossa Terra de Santa Cruz”. A atribuição do Brasil pelo primeiro nome dado pelos portugueses no “descobrimento” dessas terras revela a submissão à hierarquia colonizadora, assim como atribuir importância genuína a um documento claramente inspirado no fascismo italiano, depois da visita de Plínio Salgado à Europa, quando teve um rápido encontro com Benito Mussolini (1883-1945). A hierarquia é a base de sua organização. O manifesto inicia com a frase: “Deus dirige os destinos dos povos”. Dessa frase, podemos ler – àqueles que alegam agir diretamente em nome de Deus, tudo é permitido.
Na prática, o modelo político ou o regime econômico tem pouca importância para os saudosistas das hierarquias. Pode ser uma democracia liberal ou uma ditadura militar, desde que as hierarquias sejam reproduzidas, bem como o sagrado direito de expropriar o corpo do outro. A força de trabalho, em muitos casos, é a única propriedade do trabalhador, que não cessa de ser expropriada; o trabalhador não cessa de ser considerado propriedade de quem compra sua força de trabalho.
Como cortar esse círculo de crueldade? “Oh, senhor cidadão/ Eu quero saber, eu quero saber/ Se a tesoura do cabelo/ Se a tesoura do cabelo/ Também corta a crueldade” (Tom Zé).
José Isaías Venera é professor da Univille e psicanalista.