Žižek e o cinismo do Messias – em busca do gozo sem limites

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A descrição de Žižek sobre o cinismo na política é certeira: “quando um político prega o dever do sacrifício patriótico, o cinismo expõe o lucro pessoal que ele está retirando do sacrifício alheio”

Slavoj Žižek foi considerado pela revista neoconservadora americana New Republic o “filósofo mais perigoso do ocidente” – o que deve ter significado um elogio, apesar das interpretações ao pé da letra de fragmentos de seus livros pelo editor sênior do jornal, Adam Kirsch, no afã de construir o perigo eminente. Além disso, o jornal britânico Observer o chamou de “messias superstar da nova esquerda”, o que não deixa de ser uma profanação interessante.

Com olhos inquietos, Žižek coleciona tiques nervosos quando fala em público, mas seu discurso desperta ainda mais atenção a ponto de provocar a paranoia de muitos que o elegem como adversário. Às vezes, ficam latentes os efeitos que causa, como no texto Chegou o comunavírus publicado no blog do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em 22 de abril. Para o chefe da diplomacia brasileira, o livro Virus: catastrofe e solidarietà, de Žižek, publicado em abril na Itália, anuncia o prelúdio de uma ordem comunista sendo arquitetada – esse grande mal que ele e o governo Bolsonaro combatem.

Ora, a paranoia parece um traço recorrente em altos cargos do Estado. De fato, não é preciso ir muito longe para entender qual o desejo que está por trás da interpretação do chanceler e sua intensidade. Por meio do modo como traduz o texto de Žižek, Araújo constrói um inimigo externo, delírio que inclui até a Organização Mundial da Saúde (OMS) na suposta construção comunista planetária. Mas não é exclusividade do ministro. É uma descarga de energia com esse objeto incômodo, o comunismo, que não se esgota. Na linguagem corriqueira, é como se disséssemos: “não que eu tenha pensado nisso”, ou seja, é a afirmação pela negação. Eu nego insistentemente aquilo que desejo. Como é insuportável sustentar esse desejo, ele vem como fantasma expresso de diferentes maneiras. Um piscar de olhos fora de propósito já é significado como um signo da tal conspiração comunista.

No dia 29 de abril, vários jornais, entre eles o Correio Brasiliense, noticiaram que o presidente Bolsonaro teria publicado em seu Facebook, e logo em seguida apagado, uma suposta lista de “diretrizes para políticas educacionais” da OMS, sem citar fontes, “e que aparecem recomendações sobre masturbação e relações homossexuais para crianças de 0 a 6 anos”. O sexo e o comunismo estão sempre presentes no discurso desse governo, como um sintoma do qual o próprio governo não consegue se libertar – um gozo sem limites. No ditado popular, é o que não sai da cabeça.

Certamente, a palavra comunismo no vocabulário zizequiano tem muitos sentidos que fogem completamente a Araújo e a Bolsonaro, mas, como em uma lição básica da Linguística, o sentido das palavras está na oração; com a frase “quem casa quer casa”, temos duas ocorrências do mesmo enunciado em uma oração, mas com sentidos bem diferentes. O contexto das palavras na linearidade da oração determina os sentidos. Quando o sentido foge da oração pode revelar uma carga de gozo, ou seja, expressar aquilo que imaginamos, que conjecturamos sobre o gozo do Outro, desta alteridade radical que tudo pode enquanto “eu” nada posso. O comunismo encarna o semblante do grande Outro e Žižek só interessa a Araújo na medida em que aquele rótulo lhe pode ser facilmente aplicado. O comunismo é esse outro simbólico que rapta o gozo (energia psíquica) de Araújo e de seus pares.

Em Lacrimae Rerum, de Žižek, esse grande Outro que se dirige a nós seria a própria paranoia. É certo que esta leitura do filósofo relativiza ao máximo as noções, mas funciona bem. Em Lacan, o Outro é um lugar em que o sujeito recebe “sua própria mensagem de forma invertida”. Uma das formas (até divertida!) de ler o texto de Araújo sobre Žižek é por via dessa chave de leitura: esse superstar que tudo pode, por isso, perigoso, não seria o seu lugar de desejo, mas que vem de forma invertida, como gozo?

Em recente texto, o “superstar” faz uma analogia, mantendo o tom provocativo, entre o desastre nuclear de Chernobyl (1986), “gota d’água que levou ao fim o comunismo soviético”, com a pandemia do coronavírus. Segundo o filósofo, a pandemia tem a potência de restaurar a confiança do povo na ciência. No artigo publicado no portal Outras Palavras, em 3 de março, “o coronavírus também nos levará a reinventar o comunismo, com base na confiança nas pessoas e na ciência”.

Mas à qual comunismo Žižek se refere? A resposta foi dada pelo próprio filósofo em nota enviada ao jornal O Globo, logo depois da repercussão do texto do ministro Araújo: “Não quero impor nada, apenas observo que até governos conservadores estão lidando com a crise sanitária e econômica provocada pela epidemia. Estão introduzindo medidas que, seis meses atrás, seriam inimagináveis e vistas como um sonho comunista”. Ações em benefício das populações e do bem comum já entram no campo de significação do comunismo.

Não seria estranho articular, nessa direção, os efeitos subjetivos da pandemia como um ataque certeiro ao obscurantismo do presidente Bolsonaro e seus seguidores, entre eles Araújo, que vão da produção desenfreada de fake news — concentrando a produção no “gabinete do ódio” — à defesa do terraplanismo. Quem melhor deu conta deste negacionismo do governo foi a capa do jornal Extra, de 4 de maio, com fundo preto sobressaindo a grande manchete “100 mil infectados. 7 mil mortos” e a única imagem em que se destaca o presidente com uma criança no colo, mais algumas pessoas e as bandeiras dos Estados Unidos e de Israel. Os fatos descritos pelo jornal – número de mortos e infectados – expõem a realidade, que funciona como privação para Bolsonaro realizar suas fantasias; por isso, os ataques recorrentes e descontrolados contra os jornalistas. Ataque a tudo que impõe limites ao desejo sem limites.

Em seu recente livro publicado em abril pela Boitempo, Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo (pelo que tudo indica é a versão brasileira da edição italiana do livro a que Araújo fez referência), a epidemia desencadeou um enorme surto de vírus ideológico: “fake news, teorias da conspiração paranoicas, explosão de racismos…”. Esses vírus funcionam para despertar a violência simbólica (Bourdieu), mas, também, observa Žižek, “é possível que um outro vírus ideológico, muito mais benigno, também se alastre e, com sorte, infecte a todos nós: o vírus de começarmos a pensar em possibilidades alternativas de sociedade, possibilitando para além do Estado-nação, que se efetivem sob forma de cooperação e solidariedade globais”.

O cinismo marca o nosso tempo

O cinismo é o modo de interação dominante do nosso tempo. E o melhor exemplo vem do presidente Jair Messias Bolsonaro: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? […] Sou Messias, mas não faço milagres”. A resposta ao questionamento sobre o novo recorde de mortos por Covid-19, na noite de 28 de abril, expõe uma estrutura perversa – Bolsonaro sabe que negar a ciência e as medidas preventivas para minimizar os avanços do coronavírus resulta em mais mortes. Ele sabe; mesmo assim, o faz.

No ensaio Como Marx inventou o sintoma?, Žižek mostra que o cinismo integra a estrutura subjetiva na pós-ideologia; passando de um modelo fetichista — “eles não sabem, mas é o que estão fazendo” (traz a questão da falsa consciência que marca a ideologia) — para o modelo do cinismo — “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo” (pós-ideologia). Assim, o trocadilho pífio de Bolsonaro não seria um chiste na racionalidade cínica? Aciona a memória discursiva de um Messias da literatura bíblica, que doou sua vida aos gentios, para se juntar à narrativa do Messias presidente que sacrifica o povo em prol dos seus interesses pessoais. No ensaio de Žižek publicado no Brasil em 1996, que integra a coletânea Um mapa da ideologia, a descrição do cinismo na política é certeira: “quando um político prega o dever do sacrifício patriótico, o cinismo expõe o lucro pessoal que ele está retirando do sacrifício alheio”.

A demonstração empírica foi a declaração do ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, sobre as tentativas do presidente de interferir na Polícia Federal para obter informações privilegiadas. No dia 24 de abril, o ex-ministro exibiu à TV Globo troca de mensagens entre ele e o presidente ocorrida na véspera, levando a supor que, entre as preocupações de Bolsonaro, estejam as investigações em andamento sobre o caso Marielle e as investigações sobre as fake news que podem chegar até seu filho 02 (no melhor estilo de nomear os irmãos de um conhecido desenho animado), o vereador carioca Carlos Bolsonaro.

Fake news faz parte da racionalidade cínica

No campo da comunicação, o que se convencionou chamar de fake news, quando o melhor seria desinformação, resulta da racionalidade cínica posta em prática. Quem a produz sabe bem o que está fazendo como também quem acredita e consome seu conteúdo — sabe ou ao menos tem a intuição de que é falso —, mesmo assim, ambos agem como se fosse verdadeiro.

Entre as suspeitas de motivação para a demissão do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, há a relação do inquérito sobre as manifestações antidemocráticas aberto pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, com outra investigação em andamento, sobre as fake news contra o Supremo Tribunal Federal que apontam para o chamado “gabinete do ódio”, comandado por Carlos Bolsonaro.

O “gabinete do ódio” se parece, em uma versão patética, com um departamento do Ministério da Verdade do livro 1984, de George Orwell, no qual é possível ler: “e se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido — se todos os anais dissessem a mesma coisa [não à toa o governo Bolsonaro quer reescrever a narrativa sobre a ditadura militar] – então a mentira se transformava em história, em verdade. ‘Quem controla o passado’, dizia o lema do Partido, ‘Controla o futuro: quem controla o presente, controla o passado”.

A obra de 1949 é uma distopia totalitária que mostra o uso de mecanismos de falseamento da realidade, controlando a população com a produção do medo, em que “o inimigo do momento representava o mal absoluto”; no caso de Araújo, esse mal é o comunismo.

Na literatura, a realidade ficcional se aproxima em muito de práticas feitas no stalinismo, no qual o Ministério da Verdade – responsável pela propaganda e revisionismo histórico – tinha a função de produzir informações falsas (fake news oficiais) que resultariam em verdades (pós-verdades) que assim se integrariam à consciência (falsa consciência) das pessoas.

Para Žižek, em “Problemas no paraíso”, o stalinismo é a expressão máxima da paranoia interpretativa, ou seja, era preciso interpretar incessantemente (gozo) os fracassos do que se imaginava ser o melhor dos sistemas. A diferença entre uma paranoia stalinista — que se integra à subjetividade moderna — e a paranoia com traços fascistas (de direita) na versão pós-moderna e à la brasileira, é que, diferentemente da primeira, que sofre com a falsa consciência, à segunda não falta consciência, ou o contrário: há orgulho (entendido como direito de expressão) de ser racista, homofóbico etc.. Na paranoia cínica, significa: eles sabem e, mesmo assim, o fazem.

Em seu livro mais recente, o filósofo cita uma fala importante de Gabriel Leung, principal epidemiologista de Hong Kong: “e, é claro, quando você tem mídias sociais, fake news e notícias verdadeiras, tudo misturado, e portanto zero confiança, como fazer para combater essa epidemia?”. O grau zero da confiança reforça a racionalidade cínica. Como combater um modo dominante de assujeitamento pela via do cinismo? Somente por meio de um elemento externo, um real que desestrutura as relações de gozo. Bolsonaro pode chamar o coronavírus de gripezinha, mas ela (a Covid-19) está aí e se espraia como o vento sul zunindo nos nossos ouvidos para nos infectar. Esse real coloca limites no imaginário e no simbólico, fazendo a palavra cair e o sentido se diluir.

A queixa de Leung reforça a hipótese defendida no artigo O que há de verdade na produção dos conteúdos falsos? O falso e o verdadeiro reduzidos a disputas pelo poder. “Já não há mais mundo real nem mundo digital. Há corpos sacrificados, submetidos, com direitos achatados na alienação a uma sociedade virtual e fetichizada” – e somente o real se insere como essa presença que escapa à vida que simplesmente segue o fluxo, para que, diante dele (como a pandemia), algo novo possa acontecer.

A arte máxima da perversão

Em Guia pervertido do cinema (2006), direção de Sophie Fiennes, Žižek apresenta o cinema como a arte máxima da perversão por mobilizar nossos desejos, assim como por mostrar de que forma devemos gozar. Diante de um filme, a existência fica suspensa. A cena causa desejo, e o corpo pulsa; ou seja, o espectador goza pelo olhar. Autorizado a ver todo tipo de obscenidade, o cinema posiciona o falso voyeur (falso porque, oposto a uma prática proibida, o espectador é convocado a espiar), impedindo-o que veja na cena fílmica o próprio gozo pervertido (o que não se pode realizar em ato, o cinema realiza pela imaginação que suscita e mobiliza no sujeito).

Na sociedade do consumo, a experiência subjetiva é marcada pela incitação máxima ao gozo, seja com o cinema ou quando, simplesmente, caminhamos pelos corredores de um shopping, onde tudo está ali explícito para satisfazer o gozo ao máximo (ao menos essa é a promessa no paraíso terrestre).

Nas outras cenas que compõem o espectro midiático não é diferente. Pela via do gozo, podemos ver que não há equívoco nas interpretações sobre a pandemia em membros do atual governo Bolsonaro. Tal governo não está desconectado da realidade, mas apenas luta contra ela nas instâncias impeditivas do gozo; e o isolamento social certamente é uma delas.

É verdade. O caso de Araújo sobre a conspiração comunista não poderia ter sido mais grosseiro; nem filmes hollywoodianos em plena Guerra Fria conseguiram subestimar tanto o bom senso. Mas esse não é o ponto. No plano social, o que está em questão é a guerrilha simbólica ou, para usar uma expressão em voga de Byung-Chul Han, é a psicopolítica; quer dizer, fazer com que o sujeito acredite que pode tudo (gozo), incitando-o até o ponto de ele desejar ser um empresário de si mesmo. No caso brasileiro, quando isto aconteceu, estavam dadas as condições subjetivas que permitiram a aprovação das reformas trabalhista e previdenciária – o que em outras épocas seria impossível.

Comunismo: um significante bomba

Na guerrilha política, vence quem consegue condensar toda maldade imaginária (excesso de gozo) em apenas uma palavra, palavra-bomba que destrói territórios virtuais e afeta a vida de carne e osso.

A extrema-direita não foi nem um pouco criativa, mas muito eficiente. Não à toa o governo Bolsonaro presta frequentemente reverência aos Estados Unidos. Foram anos de produção cultural em massa sobre o anticomunismo. Assim, a questão não é se o comunismo é bom ou ruim, mas a que o discurso se refere. Para o atual governo, a palavra condensa tudo o que diz respeito aos direitos humanos e às lutas das minorias. Em síntese, os ideais iluministas do século XVIII, assim como do liberalismo clássico do XIX, do socialismo (seja utópico ou científico) também do XIX e do Estado do Bem Estar Social, sobretudo do XX, tornaram-se ideais comunistas. É certo que, sobretudo, a partir dos anos de 1960, surgiram vários movimentos – entre eles, a contracultura – questionando os valores da sociedade moderna e o uso de dispositivos de dominação, como os meios de comunicação de massa, mas as críticas em nada tinham a ver com o esfacelamento civilizatório. A realidade atual, bem ao contrário dos movimentos contestatórios, faz apelo a valores que se pautam na exclusão e demarcação de um inimigo para justificar práticas de violência.

Com a pandemia, observou Žižek, até os governos conservadores estão forçados a agir como comunistas. Essa foi a posição do ex-ministro da saúde do governo Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, ligado aos interesses dos executivos de planos de saúde e crítico do Mais Médicos, que vestiu a camisa do Sistema Único de Saúde (SUS) e defendeu o isolamento social como melhor estratégia para a defesa da vida.

No final de semana anterior (18 e 19 de abril) ao texto de Araújo, apoiadores do presidente foram às ruas manifestar reverência, além de exibir cartazes e gritos de ordem pedindo a volta à ditadura militar. Diferentemente do que muitos pensam, não há nenhum problema em conviver com a contradição entre chamar a Venezuela de ditadura e pedir a volta da ditadura no Brasil por um simples motivo: a ditadura militar no Brasil, para eles, combateu unicamente o “perigo” comunista. Além do mais, conviver com a contradição sem que isso traga sofrimento faz parte da racionalidade cínica.

Neste contexto, enquanto perversão, o objeto de desejo fica velado no plano social. Não é a volta à ditadura militar, mas sim o desejo de gozar plenamente com o corpo do outro. Essa é a paranoia. Eles inserem o comunismo, o PT, a China na posição de semblante do grande Outro (este que tudo pode). O Outro, neste caso, sintetiza-se melhor ainda no significante comunismo.

Desse modo, o problema não está na exploração, na subjugação de um grupo sobre o outro, de um gênero sobre outro, mas no fato de que essas lutas todas impedem a realização das fantasias perversas. O sexo fora do campo do pecado, a defesa à causa feminina, o combate ao trabalho escravo, a demarcação das terras indígenas são apenas variações do que caberia para eles no significante “comunismo”. O comunismo funciona assim como o pai mítico, da horda primeva, o único que goza plenamente enquanto coloca limites a todos os outros.

Em síntese, Bolsonaro e seus pares não negam a lei, mas desejam estar acima dela para gozar com o corpo dos outros. Por isso, não é de estranhar que na ordem do dia esteja sempre uma pauta de negação dos direitos sociais conquistados.

O comunismo, o grande fetiche da direita

Por que o fetiche pela ditadura vem junto com o discurso puritano? Quando um desejo perverte princípios de civilidade, o sujeito pervertido precisa, mais do que qualquer outro, se passar por santo. É como diz o ditado popular: “porque tem culpa no cartório”. O gozo se faz em olhar, “o olhar que goza ao julgar”. Como fazer para se camuflar diante do olhar do outro? Simples, apresentar-se como puritano (incorruptível, pai de família, defensor da moral e dos bons costumes etc.).

Seguindo esse princípio psicanalítico, não seria demais imaginar que integrantes do universo bolsonarista tenham sonhos eróticos com Žižek, já que os sonhos não respeitam a barreira da repressão, ou seja, compõem as imagens do sonhador sem pedir permissão à consciência. Para suportar desejos pervertidos, o sujeito precisa combater ferozmente tudo o que possa lembrar suas fantasias proibitivas.

Em Traços de perversão nas estruturas políticas, Žižek faz uma distinção importante entre duas posições subjetivas perversas no discurso político: o totalitarismo de esquerda e o de direita. Distinção central para não cair na banalidade de considerar tudo farinha do mesmo saco, como de chamar o nazismo de movimento de esquerda, quando os integrantes deste último foram os primeiros a serem presos e levados para os campos de concentração.

No fascismo, uma das formas de totalitarismo de direita, é o “judeu” que funciona como fetiche, o elemento de fora que corrompe a sociedade “orgânica”, como aponta Žižek. Na versão brasileira, não seriam os petistas que ocupariam a posição do judeu? No entanto, talvez ainda precisamos fazer mais uma amarração. Nos governos do PT, os negros conquistaram mais espaço na sociedade, as empregadas domésticas, direitos trabalhistas, o debate de gênero avançou etc., ou seja, a ampliação de direitos funciona como impeditivo para o gozo perverso que não aceita limites. A sociedade cínica goza na busca desenfreada por ir além do princípio do prazer, constituindo-se como seu principal traço que a leva à barbárie generalizada.

José Isaías Venera é professor dos cursos de comunicação da Univille e Univali, SC, e doutor em Ciências da Linguagem pela Unisul.

Reproduzido do Le Monde Diplomatique Brasil: https://diplomatique.org.br/zizek-e-o-cinismo-do-messias/