Por Claudio Eduardo de Souza- publicado no jornal Diário do Litoral
Nos seis meses em que a filial gaúcha da Cruz Vermelha Brasileira administrou o hospital municipal Ruth Cardoso, em Balneário Camboriú, foram registrados 176 óbitos.
Destas mortes, 22 envolveram crianças de até três meses de idade – metade apontada como fetos, por não terem sobrevivido fora do ventre materno. Esses números levantam a hipótese de que o entupimento das artérias do setor administrativo teve sequelas graves na área clínica do hospital. Se as suspeitas de desvios milionários de dinheiro público pelos administradores do hospital ainda estão sendo investigadas, quem viveu na pele o mau atendimento faz questão de mostrar que o seu sofrimento é real. E, nestes casos, não há mais o que remediar. Na paradisíaca Balneário Camboriú, dita a capital do Turismo de Santa Catarina, a Saúde pede socorro.
Desde que perdeu um bebê poucas horas depois do parto, a dona de casa Iara Senem já não consegue mais sair de casa. Aos 36 anos, largou o emprego de diarista e mal pode fazer os serviços domésticos. E não são as consequências psicológicas da perda que impedem Iara de seguir a vida. O problema é físico. Um parto normal forçado acabou resultando na morte do nono filho e deixando marcas que, passados seis meses, Iara ainda luta para superar: ela sofre de incontinência urinária e fecal e não pode dispensar o uso diário de fraldas.
Numa casinha humilde no alto de um morro de Balneário Camboriú, Iara guarda – do lado de uma bíblia de páginas amareladas – a única lembrança que restou de Alex, o filho caçula que não sobreviveu sequer um dia: uma foto em que ela exibe a barriga com o nome do bebê escrito, tirada antes do nascimento. E foi só. Ainda hoje lamenta não ter podido tirar uma fotografia do último dos nove filhos. Ele é uma das 22 crianças que morreram na maternidade do hospital municipal Ruth Cardoso durante os seis meses em que a Cruz Vermelha Brasileira, filial do Rio Grande do Sul, administrou a unidade.
Entre cesarianas e partos normais, o Ruth Cardoso realizou 760 atendimentos na maternidade de outubro do ano passado até abril deste ano – quando houve o decreto de intervenção do município no hospital e o afastamento da Cruz Vermelha. E 22 mães choraram suas perdas. Em metade dos casos são apontados como fetos, por já terem nascidos mortos, outros 11 chegaram a sobreviver por um curto período. Portanto, o Ruth Cardoso atingiu o índice de 28,94 óbitos por mil atendimentos. Um número 44,7% maior que os 20 óbitos por mil atendimentos do hospital Marieta Konder Bornhausen, na vizinha Itajaí, cidade ainda mais populosa que Balneário.
Contudo, pouco importam os números para quem viveu a agonia do mau atendimento. Iara não consegue esquecer nenhum dos minutos que passou internada no Ruth Cardoso. A dona de casa estava grávida de nove meses. Sentiu dores, por isso correu para o hospital. No entanto, a bolsa não tinha se rompido. Era dia 13 de novembro de 2011. Mesmo assim, os médicos a deixaram internada. Segundo Iara, começaram a estimular as contrações. “Dos meus outros filhos, sempre optei pelo parto normal porque a recuperação é mais rápida. Mas pedi umas quatro vezes para ser cesariana, porque eu sabia que ele não ia nascer de parto normal. Um médico me disse que ali não tinha como, se fosse em outro hospital ele até atenderia meu pedido”, recorda. Já na mesa de parto, novamente Iara teria pedido para o médico que fizesse cesariana e tentou explicar que não estava com as dores do parto. “Eles nem me ouviam e começaram a forçar minha barriga para o bebê nascer. Quando ele saiu, já não se mexia. Mas levaram dizendo que estava vivo”, conta.
Em menos de 24 horas, voltaram com a notícia de que Alex tinha falecido.“Eu fiz todos os exames e fui para lá sabendo que estava tudo bem. Mesmo assim, saí sem meu filho. A médica me disse que ele era todo perfeitinho”, afirma Iara. No atestado de óbito que ela guarda numa pastinha junto com todos os exames da gestação, consta que o bebê morreu de falência múltipla dos órgãos. Entretanto, a mãe ressalta que no velório viu muitas manchas roxas no corpo da criança e, inclusive, um afundamento na testa. Ela não tem dúvidas de que, se não tivessem forçado o parto normal, o filho estaria vivo. “Uma sobrinha e uma cunhada também estavam grávidas e foram ganhar o bebê no Marieta. Por medo de voltar lá. Mesmo que aconteça algo que eu não tenha opção, não penso em ir naquele hospital de novo”, confirma, traumatizada.
Hoje, a Cruz Vermelha já não se pronuncia sobre nenhum dos casos. No entanto, há seis meses, emitiu nota culpando Iara pela própria tragédia. “Durante o trabalho de parto o bebê desenvolveu distócia de ombros, ou seja, encravamento de ombros. A mãe, que não estava no momento colaborativa, fechou as pernas no período impulsivo, agravando mais a situação”, justificou.
Daphyne ainda procura pelo corpo do filho que sumiu do hospital
O dia 11 de março de 2012 tinha tudo para ser uma data comemorada todos os anos pela estudante Daphyne Kethy Souza, de 23 anos. No entanto, é uma data que ela quer esquecer. Família e amigos lotaram a recepção do Ruth Cardoso: todos queriam ver o pequeno Lucas. Mas não foi o que aconteceu. “Eu estava de oito meses. Fui para o hospital achando que estava tudo bem, que nasceria prematuro, mas que sairia de lá com meu filho. Não tinha nenhum médico na sala e as duas parteiras que me atenderam disseram que ele tinha nascido morto”, relata.
No turbilhão das emoções, perguntaram se Daphyne preferia enterrar o bebê ou doar para uma universidade fazer estudos e, ao mesmo tempo, apontar o motivo da morte. Mesmo sem assinar qualquer documento, ela autorizou o envio para a Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Entretanto, o corpo nunca chegou lá. De maneira informal, ela foi comunicada pelo Ruth Cardoso de que a instituição não aceitou o bebê, por isso teria sido enterrado como indigente. Contudo, a versão foi desmentida pelo técnico do laboratório de anatomia da Univali, Fábio Aureliano Rafael. “Esse material é muito importante, de grande valor. Jamais negaríamos”, garantiu.
Na época, através de assessoria de imprensa, o Ruth Cardoso tentou mais uma vez justificar. “A mãe colocou à disposição da Univali, que não teve interesse. Então a funerária levou o corpo e o hospital não tem nada a ver com isso”. Lucas teria sido enterrado no cemitério da Barra, em Balneário. Mas não há confirmação oficial. A funerária São Jorge não quis se pronunciar sobre quem teria realmente autorizado o enterro. Daphyne já denunciou o caso à polícia, prestou depoimento e aguarda resposta.
Morreu porque não tinha dinheiro
Alexandra da Silva coloca na mesma dosagem o sofrimento pela morte da mãe e a indignação com um médico que teria pedido dinheiro para fazer a cirurgia que salvaria a vida da dona de casa Adriana Teixeira da Silva, 56 anos. “Minha mãe acordou de madrugada com dor abdominal. Levamos para o Ruth Cardoso. Eles medicaram e mandaram embora”, recorda.
A auxiliar de laboratório de 30 anos conta que a situação se repetiu várias vezes. A mãe ia mal, medicavam e mandavam para casa. No entanto, numa dessas idas e vindas, Adriana teria recebido uma proposta de um médico – a filha ainda guarda o papel em que consta o telefone e endereço que foi entregue para Adriana junto com o pedido de R$ 3 mil para a realização da cirurgia. “Foi uma negligência muito grande. Ele queria ganhar dinheiro, mas eu não tinha como pagar, por isso fui num hospital do SUS [Sistema Único de Saúde]”, afirma.
A cobrança seria para tirar Adriana do Ruth Cardoso para fazer o procedimento de forma menos invasiva numa clínica particular. “Ele disse que ali daria para fazer, só que ficaria uma cicatriz enorme. E mandou ela para casa. Mas como a dor voltou, fomos para o hospital e eu falei que não importava a cicatriz, que eu queria a minha mãe viva”, relembra. Entretanto, não adiantou. Segundo a filha, Adriana estava com pedra na vesícula, indo para o pâncreas. A solução era a cirurgia. Antes que isso acontecesse, Adriana faleceu. Era 27 de fevereiro de 2012, e a causa da morte apontada pelo médico foi infarto agudo do miocárdio.
“Falaram que fizeram mais de 30 exames na minha mãe. Pedi para ver e não tinha. Não conseguiram comprovar”, conta Alexandra. Dentre as irregularidades já denunciadas, inclusive em reportagens do DIARINHO, está o superfaturamento de exames laboratoriais. Durante o depoimento na comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o hospital no período em que era administrado pela Cruz Vermelha, o farmacêutico bioquímico Renato Santângelo de Souza garantiu que a administração estava fraudando notas de exames, cobrando, por exemplo, a realização de quatro mil exames em um mês. Sendo que, segundo o especialista, não havia chances de terem sido feitos sequer 500 em 30 dias.
Alexandra não descansa enquanto não fizer justiça. Ela guarda cada papel. Ainda não procurou a polícia, nem o Ministério Público. Até então tinha se concentrado apenas em idas insistentes ao Ruth Cardoso atrás de respostas. “Da mesma forma que foi minha mãe, poderia ser qualquer um. E tiveram vários casos assim. Se não tem condições de atender, fecha”, sentencia. Mãe de duas filhas, ela diz que jamais vai levar outro parente para o hospital municipal de Balneário Camboriú. “Se depender de mim, ninguém da minha família coloca os pés lá!”, assegura.
Morreu sentada na emergência
O aposentado José Fidélis da Silva viu a mulher com quem foi casado por 52 anos morrer numa cadeira de rodas esperando por atendimento na emergência do Ruth Cardoso. O tom de voz anestesiado pelos 74 anos de idade esconde a tristeza da viuvez. Ele não esquece o dia 11 de fevereiro de 2012 – o dia em que a esposa morreu. Numa pasta, guarda o atestado de óbito. Na cabeça, as recordações dos últimos suspiros da mulher.
Carmem Sales da Silva tinha 72 anos e sofria do coração. Passou mal e foi levada às pressas pela família até o Ruth Cardoso. Morreu sentada, aguardando atendimento. “Nós chegamos e colocaram ela numa cadeira de rodas na emergência. Ficou um tempo lá. Só quando deu uma parada cardíaca levaram para dentro, mas não deu tempo de socorrer. Ela morreu sentada”, relata. José diz que, pelo estado em que Carmem chegou, dava para ver que precisava ser atendida com urgência. “Podiam ter levado na hora para os aparelhos. Do jeito que ela estava mal, tinham de ter atendido no ato”, lamenta.
Nota do SINPRO: No início de setembro, após uma série de denúncias, reportagens em rede nacional e pressão da opinião pública,o prefeito de Balneário Camboriú publicou um decreto declarando situação de emergência no atendimento à saúde, abrindo caminho para contratar, sem licitação, uma entidade para administrar o Hospital Municipal Ruth Cardoso. O nome da entidade –que já está escolhida- ainda não foi divulgado oficialmente, mas conforme a imprensa estadual, se trata da organização social Nossa Senhora das Graças, de Curitiba. O Sinpro Itajaí e Região considera esta situação um total desrespeito pela vida e vai lutar,junto com outras organizações, para ver esta situação resolvida e os responsáveis punidos.
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